Praias cheias, ônibus com passageiros em pé — espremidos como “sardinhas em lata” nos BRTs —, desleixo no uso de máscaras e falta de comprometimento com as regras de distanciamento. Essas são imagens que se multiplicaram na paisagem do Rio desde a flexibilização das medidas da quarentena para o controle do coronavírus , no início de junho. O resultado foi o que os especialistas mais temiam: o avanço da Covid-19, que parecia perder força. A taxa de contágio voltou a subir, assim como o número de óbitos. Ontem, o Estado do Rio ultrapassou os 100 mil casos confirmados da doença . Já a capital bateu a marca de 6 mil mortes.
Um levantamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) mostra que, na primeira semana deste mês, quando o prefeito
Marcelo Crivella anunciou um plano de reabertura da cidade em seis
etapas, o risco de as pessoas se contaminarem era “moderado”, próximo a
baixo. Passados alguns dias, as chances voltaram a ser “altas”. Em maio,
a taxa de contágio na capital era de 1,72 — uma pessoa doente pode
infetar quase duas. No início de junho, quando se decidiu pela
flexibilização, a mesma taxa era de 1,03, avaliada em “moderada”. Mas,
em meados deste mês, o quadro mudou e o risco de infecção subiu para
1,39, classificado, outra vez, como “alto”. No estado, com o fenômeno da
interiorização do vírus, os números são igualmente preocupantes. No fim
de maio, a taxa de contaminação era de 1,81, ou “muito alta”; no início
de junho, de 1,35, “alta”; e, em meados de junho, de 1,57, também
“alta”.
A última semana ligou outro alerta. Foi a segunda pior no estado desde o início da pandemia
, tanto em novos casos quanto em óbitos. Foram mais 8,7 mil infectados
na capital, o que representa um aumento de 52% em relação à anterior. O
total de óbitos também cresceu: 34%, na mesma comparação. Ontem, o boletim indicava mais 3,3 mil casos em 24 horas no estado, totalizando 100,8 mil (16% de aumento) e mais 220 óbitos (29%), chegando a 9.153 desde o início da pandemia. O governador Wilson Witzel , que havia determinado restrições rígidas, inclusive proibindo a circulação de ônibus intermunicipais, também afrouxou as regras.
Especialistas ouvidos pelo Globo avaliam que o crescimento da taxa de contaminação da doença em todo o estado aponta para um futuro que pode repetir o passado. Professor do Instituto de Medicina Social da Uerj, Mario Roberto Dal Poz comparou esse crescimento dos índices a “um incêndio mal apagado”.
"É como se o fogo diminuísse um pouco, mas continuasse queimando. Pode voltar a ser um grande incêndio rapidamente", avalia, considerando que as regiões mais pobres deverão ser as mais atingidas em caso de um recrudescimento da doença. "Quando há permissão do transporte público circular lotado, quem vai sofrer é a pessoa que já tem dificuldade de seguir as medidas de isolamento".
O impacto no sistema de saúde é outra preocupação, apesar do esforço para oferecer mais vagas, principalmente de UTIs para os casos mais graves. A pneumologista da Fiocruz Margareth Dalcolmo alerta que o descontrole nas ruas visto nos últimos dias pode levar a uma maior pressão por leitos a médio prazo. A médica lamenta porque, em algumas áreas, a cidade do Rio pode ter atingido uma taxa de transmissão menor que 1 — quando se tem um controle maior da infecção —, mas não estão livres de um retrocesso. Só ontem, foram divulgados mais 1.402 novos casos de coronavírus na capital, que já tem 52,3 mil registros.
"O prognóstico é sombrio. Não há dúvidas de que vai haver um aumento na procura na saúde. É matemática. As filas vão começar a aparecer daqui a dez ou 15 dias", afirmou a pneumologista.
Um estudo encomendado pelo próprio governo estadual ao Programa de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ chama a atenção para o papel fundamental da gestão do transporte público no enfrentamento da pandemia. Na segunda-feira, a prefeitura do Rio derrubou a proibição de ônibus e BRTs transportarem passageiros em pé.
Na avaliação de Matheus Oliveira, professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ e um dos autores do estudo, a decisão foi precoce e arriscada: "quando a prefeitura diz que passageiro pode viajar em pé, prejudica até a fiscalização".
A médica Regina Flauzino, especialista do Departamento de Saúde Coletiva e Epidemiologia das Doenças Transmissíveis da UFF, concorda que, sem fiscais, não é possível garantir o cumprimento das regras de prevenção: "ônibus, metrô e BRT lotados são meios de transporte inclusive do vírus ".
Quem sente o medo na pele é o técnico em farmácia Patrick Araújo, de 24 anos, que sai todo dia da Baixada para a Ilha do Governador. O passageiro teme sobretudo pela mãe, que mora com ele: "mesmo com a redução de pessoas nas ruas, o transporte está sempre lotado. Nunca vi ninguém fiscalizando nada".
O estudo da Coppe/UFRJ sugere que a fiscalização exija o uso de máscaras e que toda a frota esteja nas ruas. Também recomenda que os funcionários tenham a temperatura medida diariamente e usem equipamentos de proteção individual. Veículos e estações devem ser higienizados. A Secretaria municipal de Transportes informou que a autorização para viagens de passageiros em pé ainda não foi regulamentada.
Sobre a retomada da curva de crescimento, a prefeitura do Rio alegou, em nota, que tomou todas as medidas de isolamento social, equipou unidades de saúde e construiu o hospital de campanha do Riocentro, além de ter ajudado o estado e outros municípios. O governo estadual não se pronunciou.
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