Crise da água no Rio: 4 perguntas sobre consumo e origem do problema

Saulo Angelo - 7.jan.2020/Estadão Conteúdo 


A água que abastece parte da região metropolitana do Rio de Janeiro segue chegando turva, com cheiro e sabor alterados, às torneiras de quase 9 milhões de fluminenses abastecidos pelo rio Guandu.
De acordo com a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro), o problema —detectado na primeira semana do mês— se deve à presença já confirmada de geosmina em amostras coletadas. Esta é uma substância orgânica produzida por um tipo de alga, responsável por mudar as características do recurso.
Apesar de a companhia garantir que não há problema no consumo, moradores seguem desconfiados quanto à qualidade do que chega às suas casas.
Enquanto isso, algumas perguntas continuam sem respostas definitivas. A extensão do problema e a origem da proliferação de geosmina, por exemplo, foram explicadas parcialmente pela Cedae, que credita a substância às chuvas e às altas temperaturas registradas no verão. Já especialistas garantem que faltam políticas efetivas de combate ao problema.
No momento, nem mesmo a Cedae sabe dizer quando a água que vem do rio Guandu chegará em condições ideais às casas abastecidas pelo sistema hídrico. Os fluminenses, por sua vez, se perguntam se devem seguir consumindo a água ou não.

Qual é a origem do problema?

Em dissonância com a versão apresentada pela Cedae —de que a proliferação de geosmina se deve ao aumento de matéria orgânica no sistema hídrico do rio Guandu devido às fortes chuvas do verão e das altas temperaturas do Rio de Janeiro—, o ambientalista Mário Moscatelli ressalta que os despejos de lixo nos rios que desaguam no Guandu, assim como a falta de saneamento nessas comunidades ribeirinhas, são a origem do problema.
"Da maneira com que as autoridades falam, parece que o problema se resume em remover a tal geosmina da água que chega ao consumidor final. Essa é simplesmente a 'ponta do iceberg'. Nada se falou sobre a neutralização da fonte do problema, que são os rios que despejam esgoto no ponto de captação da água da estação do Guandu", diz ele.
A opinião dele é endossada por cientistas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) especializados em assuntos relacionados à ecologia aquática, recursos hídricos, saneamento e saúde pública.
Em nota divulgada ontem, os profissionais contestaram a "evidente degradação ambiental nos mananciais que são utilizados para abastecimento público da região metropolitana do Rio de Janeiro". "Essa degradação compromete a qualidade da água, dificulta seu tratamento e pode colocar em risco a saúde pública", diz o comunicado.
O engenheiro químico Gandhi Giordano explica melhor o porquê de a falta de saneamento em bairros da baixada fluminense e da zona oeste ser visto como a raiz do problema.
A geosmina é um produto eliminado por algas que se produzem nesse reservatório. A sua proliferação é acelerada com a presença de calor e matéria orgânica na água. Sem resolver a emissão de esgoto, o problema não terá solução
Gandhi Giordano, engenheiro químico

Quando e como resolver o problema?

Giordano contesta a solução para o problema apresentada ontem (15) pelo presidente da Cedae, Hélio Cabral. Em entrevista coletiva, Cabral afirmou que filtros de carvão serão trazidos de São Paulo e estarão em pleno funcionamento até a próxima semana.
"No momento, é necessário um programa completo de tratamento do manacial. Filtros de carvão são meros paliativos. Eles podem atenuar, deixar a água com uma aparência melhor, mas não resolvem a causa desta contaminação", afirma.
Moscatelli também afirma que o uso de carvão pode melhorar a qualidade da água momentaneamente, mas que o problema pode se tornar ainda maior em breve. "É apenas uma questão de tempo para que os lançamentos de esgoto se tornem tão massivos a ponto de nem a estação de tratamento do Guandu dar conta do recado", diz. "A água que chega neste momento ao consumidor deve ser tratada, é claro. Mas o tratamento que resolve o problema é outro e passa pela questão social."
A opinião dos dois vai ao encontro do posicionamento da UFRJ, no que diz respeito às eventuais estratégias para a solução do problema. "Enquanto a recuperação adequada dos recursos hídricos utilizados para abastecimento público não for feita, a perspectiva de recorrência de crises semelhantes num futuro próximo é bastante provável", diz a universidade.
"Portanto, os investimentos necessários para essa recuperação não podem mais ser adiados e devem ser considerados prioritários e estratégicos. Projetos de saneamento básico e tratamento de esgotos são fundamentais e precisam ser implantados, sendo necessário também mensurar a eficiência desses processos."

Qual é a extensão do problema e desde quando?

Embora a Cedae não informe qual é a extensão do problema, sabe-se que o Guandu atende mais de 9 milhões de pessoas —na região metropolitana, apenas os municípios de Itaboraí, São Gonçalo e Niterói são atendidos pelo sistema produtor de água potável do sistema hídrico Imunana-Laranjal.
Os registros de alterações quanto ao aspecto da água foram feitos na capital e em cidades de Baixada Fluminense. A Cedae não informou quantos e quais bairros apresentaram alterações no produto final.
A Cedae afirma ter iniciado o monitoramento em relação à água no último dia 6, quando as primeiras reclamações em relação ao gosto e ao cheiro do recurso foram recebidas.
Moscatelli diz que denuncia o problema há mais de uma década. "Tudo estava escrito para terminar desta forma. As imagens aéreas feitas em 2008 já indicavam o problema. Eu avisei, mas não acenderam o alerta."

A água é potável?

Na entrevista coletiva de ontem, o presidente da Cedae chegou a beber um copo de água, em um gesto que simbolizava a confiança nas análises realizadas pela empresa que comprovam a potabilidade. "Eu moro em uma casa, bebo água da bica. Confio na qualidade", afirmou Hélio Cabral. De acordo com ele, análises feitas pela empresa comprovam as condições ideais para o consumo.
Os pesquisadores, no entanto, afirmam que os fluminenses precisam ter cuidado com a ingestão.
Na minha casa, eu não vou assumir esse risco. É uma roleta russa [beber a água]
Mário Moscatelli, ambientalista

"Para quem não tiver condições de comprar água mineral, recomendo a fervura anterior ao consumo e o uso de produtos de desinfecção vendidos para a finalidade de tornar a água potável", recomenda Moscatelli.
Gandhi Giordano, por sua vez, se mostra cético quanto ao tema: "Água potável é incolor, inodora e não apresenta gosto atípico. Não há análise laboratorial que comprove a potabilidade da água, enquanto essas características não forem preservadas", resumiu.
A UFRJ, em nota, informa que a presença de geosmina, por si só, não implica toxidade, mas pode indicar problemas na qualidade da água bruta utilizada para o abastecimento.