País tem recorde de extrema pobreza com 14,5 milhões de famílias na miséria

 

Há dois meses, a desempregada Niedja da Silva, 29, deixou o barraco onde vivia na favela da Vila Emater, em Maceió, para morar com o marido e as duas filhas na praça do Conjunto José Tenório, no bairro da Serraria, em Maceió.

Embaixo de uma lona, pede ajuda a quem passa.

A gente hoje vive à base da doação. As pessoas nos ajudam com qualquer coisa, senão vivíamos na fome completa."

A família dela é uma das 14,5 milhões registradas no CadÚnico (Cadastro Único do governo federal) vivendo em extrema pobreza.

Mulher cozinha em praça em frente a um Centro de Apoio Psicossocial Infantojuvenil (Capsi) da Prefeitura de Maceió - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
A desempregada Niedja da Silva cozinha na praça em Maceió onde vive há dois meses
Imagem: Beto Macário/UOL

O número alcançado em abril é o maior de famílias na miséria desde o início dos registros disponíveis do Ministério da Cidadania —a partir de agosto de 2012— e representa mais de 40 milhões de pessoas. Antes da pandemia, em fevereiro de 2020, no país havia 1 milhão a menos: 13,4 milhões.

Família em extrema pobreza é aquela com renda per capita de até R$ 89 mensais, de acordo com o governo federal. Em regra, são pessoas que vivem nas ruas ou em barracos de favelas. Há ainda 2,8 milhões de famílias vivendo em pobreza (com renda entre R$ 90 e 178 per capita mensais).

Durante a entrevista ao UOL em sua "casa", ou seja, embaixo da lona montada na praça à beira do asfalto, Niedja da Silva é chamada pelo motorista de um carro. Recebe três pacotes de massa de milho para cuscuz.

É assim, as pessoas aqui passam, nos veem e ajudam. Aqui é melhor do que lá [na favela], onde ninguém nos via."

O marido de Niedja estava fora no momento em que a reportagem a visitou, catando material reciclável nas ruas. Ela conta que o homem foi demitido no início do ano passado por uma empresa de material reciclável.

A família conseguiu manter o pagamento do aluguel do barraco em que vivia (pagando R$ 180 por mês) graças ao auxílio emergencial. Entretanto, a situação de miséria chegou com o fim do benefício em 2021 —beneficiária do Bolsa Família, a família recebe R$ 130 por mês— e foi despejada do imóvel.

"Não dava mais para pagar pela casa. Meu marido passa o dia fora e só volta quando termina de conseguir algo. Mas vale muito pouco o que ele cata, é só uma ajuda mesmo com coisas básicas", afirma ela, que pede para não ser fotografada de frente. "Tenho vergonha de foto", diz.

Neste mês diz que começou a receber R$ 375 do novo auxílio emergencial. "Ajuda, a gente consegue comer pelo menos duas vezes por dia, mas ainda é muito pouco, não dá para pagar para morar em um lugar digno", conta.

Sem nada de carne em 2021

Em um terreno próximo à praça, sete famílias ocupam a área pública para escaparem dos dias difíceis. "Fomos despejados dos nossos barracos e não tínhamos como pagar um local. Aí viemos para cá", afirma Maikon Ferreira Vital, 35, que é uma espécie de líder do local.

Maikon Ferreira Vital - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Maikon Ferreira Vital em comunidade em Maceió: "Não tínhamos como pagar moradia"
Imagem: Beto Macário/UOL

Ao lado do terreno, carros (muitos de luxo) fazem fila para um dos pontos de vacinação drive thru, no estacionamento do Fórum da Justiça Federal em Alagoas.

"Aqui temos umas três pessoas que vêm doar sempre, dão pelo menos cesta básica por mês. Mas muita gente que vem se vacinar nos vê nessa situação e doa algo. Sobrevivemos assim", afirma.

Vital conta que, ali, ninguém comeu carne neste ano.

Com o auxílio ainda dava, mas acabou, e a carne ainda subiu de preço. Agora não tem como, na última vez que comi caiu até o dente [mostrando o espaço deixado pela queda dente da frente]"

No pequeno acampamento eles montaram uma cozinha coletiva e se revezam nos serviços, enquanto crianças se divertem com uma bola velha e descosturada.

Comunidade formada por antigos catadores de lixo no bairro da Serraria, em Maceió - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Bola velha e descosturada é diversão em comunidade em Maceió
Imagem: Beto Macário/UOL
Entre os moradores, há adolescentes chefes de família. Casada, a jovem A. C., 15, jogava baralho em uma mesa quebrada com amigos para passar o tempo. Mãe de um bebê de três meses, ela conta que a situação da alimentação precária é o que mais a incomoda.

Aqui só comemos ovo e salame, e olhe lá. Até o ovo está caro. Falta tudo aqui, infelizmente, e não vejo como melhorar."

Recessão e queda

Segundo o professor e pesquisador na área de economia popular Cícero Péricles de Carvalho, da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), o aumento no número de famílias na extrema pobreza pode ser explicado pela recessão e pelo baixo crescimento da economia, aliados aos limites das políticas sociais do governo.

"A situação atual do mercado de trabalho explica parte desse crescimento: são 14 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados [trabalhadores que desistiram de procurar emprego] e mais 7 milhões de subocupados, num total de 27 milhões de brasileiros sem renda ou com renda parcial do trabalho. Esse conjunto tem quase o mesmo número das famílias inscritas no CadÚnico [29,6 milhões]", diz.

Maikon - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Imagem: Beto Macário/UOL
Para Carvalho, isso amplia a desigualdade do Brasil, o que gera uma massa de pessoas não só em extrema pobreza.

"Temos ainda mais 2,8 milhões de famílias pobres, ou seja, mais 8,5 milhões de brasileiros com uma renda entre R$ 89 e R$ 178. Parece algo incompreensível, no sentido econômico, para um país que é a oitava economia mundial", diz.

O cenário para os próximos meses, diz, ainda é incerto por conta da pandemia. Mas Carvalho espera uma redução nos números da covid-19 deve aliviar a situação da pobreza.

"Espera-se que, na economia da pós-pandemia, ocorra um período de crescimento das atividades que sejam grandes empregadoras, como a construção civil, agricultura familiar, comércio, serviços e indústrias intensivas de mão de obra. E espera-se também o crescimento dos negócios das micro e pequenas empresas, geradores da maioria dos empregos no Brasil, e não apenas os microempreendedores, na sua ampla maioria trabalhadores penalizados pelo desemprego", diz.

Novo Bolsa Família

Pobreza - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Bate recorde famílias registradas no Brasil em extrema pobreza
Imagem: Beto Macário/UOL
Por causa do maior número de necessitados, o Bolsa Família bateu recorde de beneficiários em maio, com 14,69 milhões de famílias atendidas em calendário que vai até o dia 30. Dessas, 9,9 milhões foram elegíveis para receber o novo auxílio emergencial e tiveram um aumento no valor pago.

O Ministério da Cidadania informou que existe um trabalho de "aprimoramento do conjunto de programas sociais do governo federal, que vai além do Bolsa Família".

"O objetivo é ampliar o alcance das políticas sociais e atingir, com maior eficácia, a missão de superar a pobreza e minimizar os efeitos da desigualdade socioeconômica em nosso país", disse, em nota publicada no último dia 14.

Segundo o governo, a reestruturação dos programas tem o foco na "emancipação do cidadão". A fala tem relação com o discurso do presidente Jair Bolsonaro, na semana passada em Maceió, onde defendeu a ideia de "libertar" os beneficiários de prefeituras.

Hoje, o cadastro é controlado pelos municípios. A ideia do governo federal é criar um aplicativo em que o cidadão possa fazer o cadastro diretamente para solicitar o benefício.

"A experiência adquirida com o pagamento do auxílio emergencial em 2020, e replicada neste ano, possibilitou o atendimento a uma ampla parcela da população que, até então, era considerada 'invisível'. É totalmente legítima a preocupação do presidente com a utilização indevida dos programas de transferência de renda para fins políticos. Não admitiremos que o cidadão seja refém de imposições e interesses ideológicos", afirma o ministério.

 

 

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