Não é de hoje que se sabe da relação complexa e nebulosa do clã
Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro, grupos marginais que se
apoiam na violência para ampliar seu poder e fazer justiça com as
próprias mãos. Mas, na semana passada, por causa de uma reportagem do
Jornal Nacional, da TV Globo, sobre as investigações do assassinato da
vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, esse elo
com as milícias ameaçou ganhar uma nova dimensão. A reportagem mostrou a
movimentação, horas antes do crime, dos dois supostos matadores da
vereadora, os ex-policiais militares Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa, no
condomínio Vivendas da Barra, onde mora o presidente. Um porteiro do
condomínio declarou, em dois depoimentos, que Élcio, acusado de dirigir o
carro de onde saíram os tiros que mataram Marielle, pediu para falar
com a residência número 58, pertencente ao então deputado federal Jair
Bolsonaro, e ouviu uma voz que parecia com a do “Seu Jair” liberando a
entrada do visitante. No dia seguinte, o Ministério Público (MP) do
estado, baseado em provas preliminares, desmentiu as declarações do
porteiro. Mas o assunto passou a ser parte importante do inquérito,
deixou dúvidas e ainda precisa ser melhor compreendido. Depois da
citação do nome do presidente, o processo de Marielle foi enviado para
análise do Supremo Tribunal Federal (STF).
O porteiro anotou no livro de visitantes que, no dia 14 de março de
2018, Élcio entrou no Vivendas, com destino à casa de Bolsonaro, no
volante de um Logan placa AGH 8202. Também disse para a polícia que, ao
ingressar no condomínio, o veículo se dirigiu à casa 65, de Lessa, que
mora ali. Por causa da mudança de rumo, ele contou que havia voltado a
ligar para o endereço de Bolsonaro e a mesma pessoa respondeu que “tudo
bem”. Na quarta-feira 30, a promotora do MP do Rio Simone Sibilio,
coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado
(Gaeco), deu uma entrevista coletiva e afirmou que o porteiro mentiu,
para depois dizer que a informação dada por ele não é compatível com a
prova pericial. “O porquê do porteiro ter dado depoimento será
investigado. Saberemos se ele mentiu, se equivocou ou esqueceu”, disse.
Segundo Simone, a perícia feita nas gravações do sistema de interfone do
condomínio mostrou que não foi o presidente que autorizou a entrada de
Élcio e sim Lessa, acusado de ser o autor dos disparos contra Marielle.
Além do mais, Bolsonaro provou que não estava no Rio: registrou
presença, naquele dia, na Câmara, em Brasília.
Depois que seu nome veio a público envolvido com o caso Marielle, o
presidente ficou furioso e, mesmo no Oriente Médio, tomou para si o
controle das investigações, extrapolando suas responsabilidades
constitucionais. Fez um vídeo raivoso no qual disse impropérios, ameaçou
retirar a concessão da TV Globo, e orientou o ministro da Justiça,
Sergio Moro, a ordenar a Polícia Federal a colher um novo depoimento do
porteiro e “esclarecer de vez esse fato”. Moro encaminhou ao
Procurador-Geral da República, Augusto Aras, um pedido de abertura de
inquérito para investigar o vazamento das informações, considerando o
fato de que o processo de Marielle corre em segredo de justiça. “A
própria reportagem esclarece que, na referida data, o Exmo. Sr.
Presidente da República, então deputado federal, estava em Brasília,
tendo registrado a sua presença em duas votações no plenário da Câmara
dos Deputados”, diz Moro na requisição à PGR.“A inconsistência sugere
possível equívoco na investigação conduzida no Rio de Janeiro ou
eventual tentativa de envolvimento indevido do nome do presidente da
República.” O ministro solicita investigação, em conjunto, pelo
Ministério Público Federal e Polícia Federal.
Disputa política
Bolsonaro acusou o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel de ser o
responsável pelo vazamento das informações. Disse que sabia desde o dia 9
de outubro, por meio do próprio Witzel, com quem se encontrou em uma
festa no Clube Naval do Rio, que o processo havia ido para o STF por
causa da citação de seu nome. Para o presidente, o governador do Rio tem
interesse em desgastar sua imagem por causa de suas pretensões
presidenciais em 2022 e sua participação no vazamento será investigada.
“No meu entender, é uso político por parte do governador Witzel, que
agiu, no meu entender, criminosamente”, afirmou Bolsonaro. Witzel negou
qualquer interferência nas instituições ou intuito de prejudicar o
presidente. “Lamento profundamente a manifestação intempestiva do
presidente Jair Bolsonaro. Ressalto que jamais houve qualquer
interferência política nas investigações conduzidas pelo Ministério
Público e a cargo da Polícia Civil”, declarou em nota. A Polícia Civil
do Rio, também em nota, refutou qualquer interferência em seu trabalho.
“O governador Wilson Witzel não interfere na apuração dos homicídios de
Marielle e Anderson e nem teve acesso aos documentos do procedimento
investigativo, assim como a quaisquer outras investigações”, declarou.
“Lamento a reação intempestiva do presidente Jair Bolsonaro. Ressalto que jamais houve interferência política nas investigações” Wilson Witzel, governador do RioAntes do MP vir a público desmentir o depoimento do porteiro, o filho problema do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC), havia divulgado um vídeo no Twitter em que exibiu os supostos registros das chamadas no condomínio que também negavam as denúncias. Um dos áudios que Carlos mostrou foi gravado às 17h13 e se referia a uma chamada à casa de Ronnie Lessa. Na gravação, o porteiro anuncia a chegada do “senhor Élcio” e ouve como resposta “tá, pode liberar aí”. Segundo Carlos, não houve nenhuma ligação para a casa de seu pai. A atitude do filho do presidente, que tomou a iniciativa de resgatar os áudios na administração do condomínio, poderia ser considerada uma tentativa de obstrução de justiça. Além disso, a iniciativa é passível de desconfiança porque ele tem possibilidade de esconder ou manipular parte das informações. Ainda existem muitas lacunas na investigação do caso e falta explicar porque o porteiro escreveu um registro no livro que não corresponde ao conteúdo verificado nas gravações. O que se espera é uma apuração independente e transparente ao longo do caso e não interferências indevidas da família Bolsonaro.
Seja como for, a investigação da informação do porteiro trouxe mais uma prova decisiva do vínculo criminoso de Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa naquele dia. Serve também para lembrar, tristemente e mais uma vez, da proximidade da família Bolsonaro com as milícias. A filha de Lessa namorou o filho mais novo de Bolsonaro, Jair Renan. E o presidente já foi fotografado ao lado de Lessa e de Élcio. Muito embora diga que não há qualquer laço com os suspeitos de matar Marielle, não dá para acreditar que os dois são completamente estranhos para Bolsonaro, até porque ambos são ex-militares. É o tipo de negativa que gera mais suspeitas do que esclarecimento. O que se espera de um verdadeiro presidente é uma postura isenta. E está claro que, apesar das declarações do MP, ainda é necessário fazer uma investigação rigorosa sobre o que de fato aconteceu naquele dia. É preciso saber por que o porteiro mentiu ou se ele se enganou. E quais foram seus motivos para incluir Bolsonaro na história.