
Em seis meses de intervenção federal, o Rio de Janeiro
contabilizou 2617 homicídios dolosos, 742 mortos, 31 chacinas e 4850
tiroteios. Até agora, 736 moradores e 51 agentes de segurança perderam
suas vidas. Os dados foram revelados na manhã desta quinta-feira 16 pelo
Observatório da Intervenção, no documento Vozes sobre a intervenção. De acordo com as informações coletadas em depoimentos e monitoramentos, a ação do governo federal coleciona fracassos.
“Se o cotidiano já era violento, talvez tenha
até piorado”, descreve Tarcísio Lima, morador de Manguinhos, bairro da
Zona Norte do Rio de Janeiro. O depoimento, que faz parte do documento,
poderia ser de qualquer morador da Baixada Fluminense, de São Gonçalo ou
da Rocinha, áreas que concentram os índices de violência mais
crescentes desde fevereiro no Rio de Janeiro.
Essas regiões são as principais
localidades de onde dispara o aviso “atenção na região” no aplicativo
Onde Tem Tiroteio, que alerta moradores do Rio de Janeiro sobre o perigo
nas ruas. De 16 de fevereiro até o início deste mês, os cariocas
receberam o alerta 3111 vezes em seus celulares.
Só na Baixada, o número de mortes por ação
policial aumentou 48% e o número de mortos em autos de resistência
atingiu seu maior número, 233 pessoas.
Segundo o Observatório, as regiões mais conhecidas pela
violência e pelo tráfico, são as que mais tem sentido na pele as
incursões militares. Fato que atesta o verdadeiro caráter do Rio como
uma “vitrine da intervenção”.
Com postura ostensiva, a intervenção vem
apostando na velha "guerra às drogas" e nas operações "faraônicas",
métodos que, segundo especialistas em segurança pública e moradores das
favelas, são falhos, ineficientes e só agravam o quadro de violências diárias e mostram que o Gabinete não enxerga o morador de favelas como um sujeito com direito à segurança pública.
Segundo o Observatório, o quadro é desalentador: homicídios
e chacinas continuam extremamente altos, mortes decorrentes de
intervenção policial e tiroteios também cresceram. As disputas entre
facções e quadrilhas, incluindo milicianos, fugiram ao controle em
diversas áreas.
As páginas do documento relembram a morte de Marcos
Vinícius, os tiros disparados de helicópteros na Maré, a a não
elucidação do crime contra Marielle Franco
e a falta de investigação nas chacinas da Rocinha e da Cidade de Deus.
São exemplos pontuais - e graves - de uma situação cotidiana que mostra
que a intervenção não enxerga o morador de favelas como um sujeito com
direito à segurança pública.
“Na concepção militarista de segurança, a favela é
considerada área hostil, onde todos são inimigos”, afirma Filipe dos
Anjos, conselheiro do Observatório e secretário-geral da Federação de
Favelas do Estado do Rio de Janeiro. “A política de extermínio sob a
filosofia da guerra é a única opção que o Estado apresenta para os
jovens negros e negras, pobres e favelados. Uma ação genocida, racista e fascista”.
O documento também conta com depoimentos de praças das
Forças Armadas que preferiram não ter seus nomes identificados. Neles,
fica estampado que a intervenção não é vista com bons olhos nem mesmo
dentro do Exército.
“Alguns militares também não concordam com a intervenção.
Sentem-se ameaçados: nós viramos alvo. É muito desgastante
emocionalmente”, afirma um deles. Outro, continua: “A intervenção é
ineficaz e mentirosa. Tudo não passa de uma grande perda de tempo, algo
para inglês ver. Não se sabe quem ganha, e o quê, insistindo com a
intervenção”. O entendimento, nesses relatos, é de que até mesmo dentro
do Exército, a ação é vista como uma medida política e não de segurança
pública.
Mais do mesmo
O despreparo em relação às ações de inteligência e ao
planejamento estratégico preocupa o Observatório. Segundo o documento, o
Plano Estratégico da Intervenção Federal foi oficialmente divulgado no
mês de julho, cinco meses após o decreto que a autorizou. Até esse mês,
apenas 11 das 66 metas do Plano Estratégico da Intervenção foram
cumpridas.
“As ações já cumpridas focam no patrulhamento ostensivo e
no reaparelhamento das polícias, ao passo que medidas voltadas à
inteligência e à redução dos crimes contra à vida andam a passo mais
lento”, afirma o Observatório.
Samira Bueno, cientista social do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, afirma que, mais uma vez, o governo optou por repetir
uma fórmula já saturada. Essa atitude se personifica no aumento das
incursões militares para prisões e apreensões, mais violência policial,
mais mortes de policiais e também mortes causadas por policiais e o
prosseguimento da guerra às drogas.
“Ao invés de priorizar o investimento em inteligência e
estratégias capazes de enfraquecer a ação do crime organizado e a
corrupção estatal, opta-se, novamente, por mais do mesmo”, comenta
Samira.
Pablo ressalta a falta de investigações e de operações que
procurem entender a dinâmica do tráfico. Ao contrário, as ações
militares focaram-se, durante esses seis meses, operações
desarticuladas, com milhares de homens, que visavam a apreensão e a
prisão de pessoas que são apenas a ponta mais fraca de um complexo
esquema do tráfico e das facções.
O mesmo foi observado em relação às milícias. “Por conta da
hipótese da morte da Marielle ter sido fruto das ações de milícias,
houve uma tentativa de mostrar que algo estava sendo feito. Prenderam
mais de cem milicianos em uma festa. Mas não é fazendo essas prisões que
você consegue desarticular completamente esses grupos”, comenta Pablo
Nunes, pesquisador do Observatório da Intervenção.
Orçamento
No documento, Julita
Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania,
pontua que as operações envolvem milhares de policiais e soldados, têm
um custo altíssimo e gera resultados pífios. "Quando for conhecido
quanto custou a apreensão de cada arma ao longo dessas operações, os
moradores do Rio de janeiro ficarão estupefatos e frustrados", avisa.
A falta de transparência não se refere apenas às estatísticas. O orçamento também é uma dúvida
que permanece sem respostas. Em março deste ano, o Governo Federal
disponibilizou R$1,2 bilhões para a intervenção. Numa manobra que o
Observatório chamou de “obscura e irresponsável”, levando em conta a
arbitrariedade com que foi feita e a grave crise fiscal e os cortes em
programas sociais.
“Há uma caixa preta sobre o financiamento. Eles
dizem que todo esse dinheiro vai ser usado de acordo com o Plano
Orçamentário, mas eles não divulgam esse Plano”, afirma Pablo.
Até o final de julho, segundo o Observatório, apenas
R$103 mil, dessa verba, haviam sido pagos. Além disso, o que mais
preocupa os especialistas entrevistados pelo Observatório, é que não há
nenhum detalhamento de como esses recursos serão gastos. “Observamos que
processos de compras de fuzis, munições, fardas e veículos - o velho e
ineficiente modo de investir em segurança pública - estão sendo
iniciados, muitos sem licitação”, afirma o documento.
Falta de transparência
O Observatório usou de muitos meios alternativos para
compilar todos os dados, isso porque falta transparência na divulgação
dos números oficiais do governo. “Uma política de segurança pública deve
ser pública em todos os seus aspectos, inclusive em informação”, afirma
Pablo Nunes.
“O Gabinete nega informações e não retorna solicitações. É o
oposto do que deveria ser uma política pública. Um regime democrático
pressupõe controle da sociedade civil”.
Ainda segundo o documento divulgado, apesar dos pedidos, o
Gabinete não deu respostas sobre as mais de 600 mortes decorrentes de
ação policial ocorridas desde fevereiro.