Na semana em que o Brasil se aproxima das 500 mil mortes por Covid-19, epidemiologistas e cientistas de dados alertam para um novo agravamento da pandemia na maioria dos estados e regiões do país.
Essa "terceira onda", expressão popularmente aceita para descrever o agravamento dos números após uma relativa melhora, está relacionada a diversos fatores — entre eles, o relaxamento das medidas restritivas, que permitiu o retorno de atividades sociais e comerciais e o consequente aumento da circulação de pessoas pelas ruas.
Mas há algumas características próprias do atual agravamento, como seu local de "início" e o as faixas etárias dos atingidos.
A preocupação é que essa retomada acontece num período em que os sistemas de saúde ainda estão bastante fragilizados e sem condições de dar vazão à chegada de milhares de novos pacientes.
"Estamos com uma transmissão comunitária do coronavírus extremamente alta e em patamares fora do controle. Para completar, temos cada vez menos intervenções para controlar isso", interpreta o médico Marcio Sommer Bittencourt, do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da USP.
"Diante disso, não tem como a nossa perspectiva ser positiva", diz.
De acordo com as projeções do Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, o Brasil pode contabilizar um total de 727 mil mortes por covid-19 até outubro de 2021.
Caso ocorra algum evento que piore ainda mais a situação da pandemia por aqui, esse número salta para 847 mil nas estimativas mais pessimistas feitas pelos especialistas americanos.
Mas, para entender o provável futuro da pandemia no país, é preciso antes saber como chegamos até aqui.
Três ondas ou tsunami?
Os especialistas são reticentes em afirmar que o Brasil viveu a primeira, a segunda ou a terceira onda da covid-19.
E é fácil entender a resistência a esses termos quando olhamos os gráficos de casos ou mortes relacionadas ao coronavírus: o país nunca chegou a reduzir de forma drástica os números das infecções ou dos óbitos.
Ao contrário de outros países, que têm picos muito bem definidos, a doença permaneceu relativamente estável por aqui durante muitas semanas de 2020 e 2021.
Mesmo nos períodos de maior calmaria, como os meses de outubro de 2020 e maio de 2021, a taxa de infectados e mortos nunca esteve realmente abaixo da casa das centenas ou até dos milhares.
Vamos tomar o período mais recente como exemplo: fevereiro, março e abril de 2021 foram marcados por recordes diários nos boletins epidemiológicos. Até o momento, esse foi o período mais grave desde que a doença chegou ao país.
Em maio e no início de junho, os índices da covid-19 até diminuíram um pouco, mas na maioria das vezes eles se mantiveram acima das 2 mil mortes diárias.
Onde estamos?
Após o pico observado nos primeiros meses do ano, o Brasil viveu nas últimas semanas um momento de relativa estabilidade nas hospitalizações e nas mortes por covid-19.
Vale reforçar novamente que isso ocorreu em patamares muito altos, com números elevados de novas internações e óbitos relacionados ao coronavírus.
Segundo um relatório recente produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) , em muitos Estados do país essa tendência linear dos números já se modificou e tudo indica que eles voltarão a crescer a partir de agora.
"Isso nos sugere que a transmissão comunitária do vírus ainda é muito alta", avalia o pesquisador em saúde pública Leonardo Bastos, da FioCruz.
O especialista baseia sua análise nos dados do Sivep-Gripe, um banco público que registra as internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) que acontecem no Brasil.
Durante a pandemia, presume-se que a maioria dos pacientes que precisa ficar em enfermarias e Unidades de Terapia Intensiva (UTI) em razão da SRAG estão infectados com o coronavírus.
Ao tabular as últimas estatísticas, Bastos encontrou um cenário bastante alarmante: praticamente todos os Estados brasileiros apresentam uma taxa superior a 10 internações por SRAG a cada 100 mil habitantes.
Esse número indica uma transmissão viral extremamente alta, como ele mesmo classificou.
Esse mapa é uma novidade, e o objetivo é reforçar que estamos num período de transmissão comunitária extremamente alta. Mesmo com alguns estados apresentando estabilização ou queda. A nota técnica relacionada a esse mapa será publicada em um momento mais oportuno.
As duas únicas exceções, se é que podemos classificá-las assim, são Espírito Santo e Roraima, onde essa taxa varia entre 5 e 10 internações por 100 mil habitantes, o que significa uma transmissão viral muito alta.
"Vale lembrar que as hospitalizações e os óbitos são a ponta do iceberg no processo de transmissão", pondera o pesquisador.
"A epidemia é mantida pelos casos leves e pelas pessoas infectadas que ainda não apresentam sintomas, pois elas circulam livremente sem saber que estão com o vírus", completa.
Em outras palavras, um novo agravamento da covid-19 depende de um verdadeiro efeito dominó.
Sequência de tragédias
"A pandemia possui uma sequência natural, que envolve a transmissão, a infecção, a hospitalização, a necessidade de UTI, a intubação e a morte", explica Bittencourt.
Tudo começa com indivíduos infectados que passeiam ou trabalham pelas ruas livremente e passam o coronavírus para aqueles que ainda estão suscetíveis. Isso vai criar novas cadeias de transmissão numa progressão geométrica.
Na sequência, cerca de 15% a 20% desse grupo apresentam sintomas mais preocupantes, que vão necessitar de uma atenção médica especializada.
Uma parte importante desses pacientes precisará ficar internada em enfermarias e UTIs. Alguns deles vão desenvolver complicações e morrer.
Agora, imagine o que acontece quando a taxa de transmissão do coronavírus está extremamente alta, como revelam as análises de Bastos: a consequência disso é a explosão dos números de hospitalizações nas semanas seguintes.
E o problema fica ainda pior quando se considera que o número de leitos de enfermarias e UTIs é limitado, bem como a quantidade de médicos, equipamentos e insumos farmacêuticos.
Ou seja: não há vagas, recursos humanos ou material suficientes para suprir a demanda num momento de alta procura.
E essa falta de cuidados de saúde adequados desemboca em mais agravos: pessoas que poderiam se recuperar bem, caso recebessem a atenção necessária, simplesmente morrem em casa esperando por um leito.
O colapso no sistema de saúde, portanto, amplia a taxa de óbitos e torna essa avalanche da pandemia ainda mais dramática.
Foi isso que vivemos nos primeiros meses de 2021 e é algo que pode voltar a se repetir caso as medidas necessárias não sejam tomadas.
Pacientes mais novos e crescimento 'de baixo pra cima'
A epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo, destaca como a retomada da pandemia parece seguir uma outra trajetória a partir de agora.
A professora se baseia no último boletim do Observatório Covid-19, da FioCruz , que compilou dados até dia 29 de maio.
"Nas ondas anteriores, o colapso começou na região Norte do país e 'desceu' aos poucos para o Centro-Oeste e o Sudeste. Agora, vemos que o agravamento se inicia pelos Estados do Sul", detalha.
Maciel especula que a proximidade dessa região brasileira com a Argentina, que vive um momento complicado da pandemia, pode estar relacionado a isso.
"Não conseguimos saber se há a influência de alguma variante nesse cenário, pois não temos uma vigilância genômica capaz de detectar se alguma nova versão do vírus veio de lá e cruzou nossas fronteiras", diz.
A epidemiologista também chama a atenção para o "rejuvenescimento" da covid-19 em território brasileiro: nas primeiras semanas de janeiro de 2021, 63% das internações se concentravam em pessoas com mais de 60 anos.
No final de maio, essa porcentagem estava em 32%, o que significa uma queda de quase metade na participação dos mais velhos nos quadros graves de infecção pelo coronavírus.
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