No
meio da mata no interior do estado de Rondônia, o último sobrevivente
de uma tribo indígena resiste ao contato com a civilização do homem
branco. Motivos para a decisão não faltam. Após ter os últimos membros
da tribo mortos por fazendeiros em 1995, o “índio solitário” mantém
tradições, costumes e sabedorias que desaparecem aos olhos incrédulos
dos caras pálidas.
A primeira vez que foi visto pela Frente de Proteção Etnoambiental
Guaporé (FPE Guaporé), sediada em Alta Floresta (RO), foi em junho em
1996. O achado ocorreu após informações de um grupo de madeireiros que
apontavam a existência de um índio, uma cabana, armadilhas e um buraco
que, posteriormente, serviria de apelido ao aldeado.
“Chegamos a ficar duas horas em frente a cabana para convencê-lo a
sair, mas ele se armou dentro dela”, lembra o servidor da Fundação do
Índio (Funai), Altair Algayer, também coordenador da FPE Guaporé.
Após confirmada a existência do sobrevivente da Terra Indígena (TI)
Tanaru, a Funai se utilizou de dispositivos legais para a interdição da
área. Assim, por meio da Portaria do Presidente da Funai nº 1040, de 16
de outubro de 2015, a área demarcada de 8.070 hectares teve sua
interdição prolongada por mais 10 anos.
As primeiras interdições já haviam acontecido na década de 1990, quando houve a confirmação sobre um índio isolado.
Os indígenas da TI Tanaru são vítimas de eventos históricos na Amazônia
desde 1980, onde a colonização desenfreada, a instalação de fazendas e a
exploração ilegal de madeira em Rondônia, provocou sucessivos ataques
aos povos indígenas isolados que viviam nessas regiões, resultando em
expulsões de suas terras e mortes.
E foi em um último ataque de fazendeiros, no final de 1995, que o grupo
da TI Tanaru, provavelmente já pequeno, segundo equipe local, se
transformou em apenas uma pessoa. Os culpados jamais foram punidos.
A Funai, desde então, realizou 57 incursões de monitoramento do
“indígena solitário” nos últimos 10 anos, além de 40 viagens para ações
de vigilância e proteção da TI Tanaru.
As imagens que correram o mundo, mostrando o “índio do buraco”, foram
obtidas por acaso, durante ações da FPE Guaporé no interior da TI
Tanaru. A Funai afirma que, graças aos monitoramentos da área, há cinco
anos não são registradas invasões de madeireiros, desmatamentos e
presença de pessoas estranhas dentro dos limites da TI.
Como vive?
Hoje, segundo a Funai, o indígena vive próximo à divisa de quatro
municípios no sul do estado, mais precisamente em Corumbiara, município
distante a pouco mais de 700 quilômetros de Porto Velho.
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Altair Algayer explica que demandou muito tempo até que imagens
pudessem ser feitas. “Não é somente chegar e ver o índio. Das poucas
vezes que conseguimos localizá-lo, ele fugiu rapidamente. Não dá tempo
de tirar uma máquina e fotografar ou filmá-lo”, afirma o servidor da
Funai.
As únicas imagens que comprovam a existência do “índio solitário” foram
feitas quando ele não estava perto. “Apenas uma vez, cheguei a olhá-lo
muito próximo, mas não tive como registrar esse momento. Por ele não
entender nossa língua, usei vários gestos”, disse.
O registro mais extenso é da morada do índio: uma cabana, popularmente
conhecida como tapiri, estrutura feita com lascas e cascas de madeira,
palmeiras e troncos de pau, coberta com palha do chão até o teto.
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Só que as propriedades construídas pelo índio solitário têm um toque
especial: a existência de um buraco. Até hoje, a FPE Guaporé localizou
48 moradias semelhantes a do índio.
“A primeira coisa que ele faz é cavar um buraco. Depois, constrói a
casa. A ação, aparentemente, não tem função nenhuma aos nossos olhos,
mas acredito que a prática esteja ligada à sua religião. Somente ele
pode explicar a função disso. Ele não dorme lá dentro e não guarda nada.
A rede é armada em cima do buraco”, explica Altair.
Altair também acredita que as ferramentas de ferro, encontradas com ele
em 1996, indicam que houve uma proximidade com outras pessoas antes do
primeiro contato com os servidores da Funai.
“O contato dele com nossa sociedade foi muito próximo, pois haviam
estradas feitas por madeireiros na floresta. Ele possivelmente andou
junto com essa ocupação, onde com certeza, pegou ferramentas que ficavam
pelo caminho”, supõe.
Mas, nem mesmo as ferramentas resistem ao tempo. Quando a equipe vê que já não estão boas, doam outras.
“Ele aceita facão, machado e panelas em alguns casos, somente quando
são deixados perto de sua casa. Doamos também algumas sementes, já que
ele perdeu todo o seu cultivo em 1996. Hoje, o índio mantém um cultivo
de batata, mandioca, mamão para subsistência”, explica o servidor.
Razão do isolamento
A decisão de tribos indígenas de se isolarem na mata, distantes do
homem branco e de sua cultura é um fato ainda comum no estado de
Rondônia, segundo Altair.
“Em 1995, havia um grupo com quatro pessoas, que não tinha mais
condições genéticas de se reproduzirem entre eles. No município de
Alvorada d’Oeste, há um grupo isolado com três pessoas na terra indígena
de Uru-Eu-Wau-Wau e outros na fronteira com o Mato Grosso”, lembra.
O isolamento, aos olhos do servidor, parece lógico para a maioria das
tribos, já que os primeiros contatos com o homem branco resultaram em
confrontos e perda de territórios. “Acho que eles pensam que a
experiência não foi muito boa, então não vale a pena nos aproximarmos
desse pessoal”, reflete Altair.
Essa hipótese é compartilhada pela presidente de uma organização de
defesa étnico ambiental no estado, a ambientalista e indigenista
Ivaneide Bandeira, que ajudou na demarcação da TI Tanuru.
“Ele viu seu povo morrer. Penso que acabou desenvolvendo um medo e
raiva do homem branco. Ele não confia em ninguém. Logo, não quer contato
com quem destruiu seu povo. Ele não sabe em quem confiar. Ele está
fugindo de qualquer contato”, afirma a ambientalista.
Mas a solidão também preocupa a equipe da Funai, pois estando sozinho, o
indígena solitário pode ser picado por algum animal ou se machucar e
não ter ninguém para ajudá-lo. “Em situação de emergência ele deverá
enfrentar muita dificuldade. As atividades que ele desenvolve hoje
também podem ser comprometidas devido à idade avançada (50 a 60 anos)”,
explica o servidor Altair.
Para a ambientalista e indigenista Ivaneide Bandeira, o índio solitário representa algo muito maior.
“Ele exemplifica a resistência de um povo que sofre massacre
constantemente em nome do agronegócio. A luta de um homem que mostra a
inercia do Estado referente a proteção dessas áreas e que falha em
prevenir o genocídio de povos indígenas no Brasil. Isso mostra que muita
coisa precisa ser feita para impedir que o mesmo aconteça aos 113 povos
isolados pelo Brasil, sendo oito no estado de Rondônia. Ele é o maior
símbolo da resistência de um povo que luta por sua vida”, reflete a
ambientalista.
Mesmo após perder tudo, inclusive seu povo, o “índio solitário” provou
que, mesmo sozinho, é possível sobreviver. O fato é que, mesmo optando
pelo isolamento ou pelo contato com a sociedade, o último sobrevivente
da tribo Tanaru levará consigo uma civilização inteira.