Responsável por denunciar criminalmente mais de 300 membros do Primeiro
Comando da Capital (PCC) nos últimos cinco anos, o promotor Lincoln
Gakiya testemunhou as transformações que levaram o grupo a deixar de ser
uma facção dos presídios paulistas para se tornar a “maior organização
criminosa da América do Sul”.
“O que falta ao PCC para se tornar uma organização mafiosa é a
capacidade de lavar dinheiro, mas isso será obtido em breve, por causa
do tráfico internacional”, afirma.Gakiya diz que o grupo está filiando paraguaios e bolivianos e explica que a disputa pelas rotas do tráfico obrigou o PCC a matar mais de cem integrantes do Comando Vermelho (CV). E há ainda o ataque ao Estado. “O PCC adotou uma tática terrorista: mata aleatoriamente agentes prisionais ou policiais para espalhar o terror.”
O PCC pode repetir em São Paulo os ataques de 2006?
Não. O PCC ficou conhecido pelos ataques, mas para a organização foi ruim, pois ela perdeu integrantes, armas e dinheiro com o tráfico. Pela primeira vez houve união entre as Polícias Civil e Militar. E enfrentamento, com mais bandidos mortos do que policiais. Em minhas investigações, eles (os bandidos) dizem que jamais farão um 2006 de novo. Eles repensaram o enfrentamento ao Estado e isso tem sido feito de forma pontual e covarde: os assassinatos de agentes penitenciários e policiais. Eles são atos de natureza terrorista pois, além de atingir a finalidade de vingança, servem para causar um terror indiscriminado. Em 2012, tivemos mais de cem policiais mortos no Estado. Houve uma guerra. Eles soltaram um salve (ordem), dizendo que, para cada bandido morto, matariam dois policiais.
Os 106 policiais assassinados em 2012 no Estado foram mortos pelo PCC?
A maioria sim. O próprio PCC determinou na época que se fizesse a simulação de latrocínios (roubos seguidos de morte). Alguns casos foram assaltos mesmo, mas a maioria foi simulação, como agora no Rio Grande do Norte, que só neste ano teve 14 PMs mortos. A estratégia é a do terror. A liderança da facção ficou presa com Norambuena (Maurício Hernandez, ex-chefe militar da Frente Patriótica Manoel Rodriguez). Esse terrorista chileno disse a eles (PCC) na época (dos ataques em 2006): ‘Vocês estão errando com esses ataques indiscriminados, perdem apoio popular e não atingem o fim almejado, pois a polícia acaba se unindo’. Já o efeito desses ataques isolados é grande. Veja o caso dos agentes penitenciários federais: são três mortos. Quando o Estado não cede, eles praticam o atentado. Para tanto criaram a Sintonia Restrita. A estratégia é essa.
Na denúncia da Operação Echelon o senhor cita vários homicídios. O senhor contou quantos foram detectados nas conversas e nas cartas interceptadas?
Aqueles que estão identificados (na Echelon) são 12. Mas há relatos de muitos mais nas conversas telefônicas e nos arquivos dos celulares apreendidos. Isso está sendo investigado para ser compartilhado com os outros Estados. São todos decididos pelos tribunais do crime.
Os tribunais do crime estão criando um novo tipo de desaparecido no País? O desaparecido do crime organizado?
Há casos em que o corpo não aparece. Na sequência das mortes do Gegê e do Paca (Rogério Jeremias de Simone e Fabiano Alves de Souza, líderes do PCC morto em fevereiro, no Ceará), teve um criminoso importante, o Nado (José Adinaldo Moura), que dizem ter sido enterrado de cabeça para baixo, cujo corpo até agora não apareceu. Ele foi morto na mesma época do Cabelo Duro (Wagner Ferreira da Silva). Sumiu.
O PCC está adotando práticas dos cartéis mexicanos e da Máfia, desfazendo-se dos corpos?
Exatamente. Executam as pessoas e gravam vídeos. Alguns vídeos chegaram para a gente durante as investigações.
Quantos?
Creio que deve ter cerca de uma dezena (de vídeos). Em celulares de presos encontramos diversas imagens de pessoas decapitadas ou sem membros. Esse material foi para a perícia para fazer a confrontação e tentar localizar essas vítimas. São as mortes dos inimigos e dos traidores (do PCC) nos tribunais do crime. Em uma das interceptações, um bandido diz no Ceará que havia matado cinco. E o comparsa responde que era “pouco”. As investigações em andamento mostram que, na guerra entre as facções, há muito mais mortes. Só de integrantes do Comando Vermelho foram mortos mais de cem.
O PCC patrocinou a união entre facções cariocas contra o CV?
O traficante Nem (Antonio Bonfim Lopes), da Rocinha, passou para o Terceiro Comando Puro. A facção Amigo dos Amigos (ADA) já havia feito uma aliança com o PCC por causa da rivalidade com o Comando Vermelho. Interceptamos mensagens que mostram que Nem fez contato com líderes do PCC em um presídio federal e pediu apoio. O PCC forneceu droga e armamento para ele retomar a Rocinha. E, se precisasse de gente, o PCC também forneceria. E no Ceará, em 2017, a facção Guardiões do Estado (GDE), que era neutra, fez aliança com o PCC contra o CV e a FDN (facção Família do Norte).
O PCC quer reforçar a presença dele em Estados com portos importantes para o tráfico?
Eu não tenho dúvida. Onde existem portos e na Região Norte, em razão da fronteira com países produtores de cocaína, como Peru e Colômbia, pois já tem o domínio das fronteiras da Bolívia e do Paraguai.
A prioridade da facção é dominar as rotas do tráfico?
Essa é uma forte tendência. O que mudou no PCC desde 2005? Tudo. Ele praticamente não tem mais nada a ver com o que era. O organograma dele hoje é totalmente diferente. O PCC não atuava no varejo, só no atacado. Essa modificação importante foi imposta pelo Cego (Daniel Vinícius Canônico) e pelo Gegê (Rogério Jeremias de Simone). O PCC não tinha biqueiras. Comprava a droga de atravessadores no Paraguai e na Bolívia e revendia. Primeiro, o PCC tomou os pontos na Baixada Santista. A facção decapitou o Naldinho (Ronaldo Barsotti) e o jogou no mar. Seu corpo não apareceu até hoje. Na capital, traficantes que deviam para o PCC pagaram passando o ponto. Aí a cúpula viu que algumas biqueiras davam muito lucro, até R$ 1 milhão por semana. Dos inimigos e dos traidores, tomaram os pontos. E de outros, compraram, ganhando tanto no atacado quanto no varejo. Depois, a facção se estruturou no Paraguai. Com a saída de Gegê da prisão (2017), os atravessadores foram eliminados porque estariam ‘roubando a facção’. Gegê se aproximou dos produtores pequenos e grandes, obtendo a droga a custo baixo. E aí ele criou o Tomate, o tráfico para a Europa. Foi o Gegê que criou o termo.
Como isso aconteceu?
Gegê viu que integrantes do PCC mandavam droga para a Europa por conta própria como se fosse em nome da facção. Ele acabou com isso. O Gegê chamou esses traficantes e disse: “A partir de agora esse canal é da ‘família’. Se quiser trabalhar, vai trabalhar para a gente’. A partir daí, começou o tráfico internacional forte.
E qual o papel de Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, que teria mandado matar Gegê e controlaria o envio de cocaína da Bolívia para o PCC?
A primeira informação que eu tive sobre o Fuminho foi em 2014, durante o plano de resgate de Marcola (Marco Willians Herbas Camacho). Ele é mais rico do que Marcola. E poderoso. No caso dos assassinatos do Gegê e do Paca, os corpos não deveriam ter sido encontrados. As ordens eram para queimar e enterrar. Mas jogaram só um pouco de gasolina e foram embora. Deram azar porque nós identificamos a morte do Gegê aqui de São Paulo e informamos a polícia do Ceará. Eles iam desaparecer para não envolver ninguém, mas o serviço foi mal executado. Essa situação respingou no Fuminho e no Marcola.
Gegê queria tomar o lugar de Marcola?
Com certeza absoluta. Há disputa de poder na cúpula. Mas o PCC não vai rachar. Hoje, ele tem estrutura para caminhar independentemente de quem é o seu líder.
O que falta para o PCC ser uma máfia de fato?
Só falta a consolidação da lavagem de dinheiro, mas isso será obtido em breve, por causa da entrada da facção no tráfico internacional. Por enquanto, está em fase embrionária. O Gegê fazia uma lavagem importante. Ele desviou mais de R$ 100 milhões. Usaram uma construtora para pagar imóveis. Os recursos do tráfico internacional são enormes – US$ 25 mil por quilo colocado na Europa e US$ 100 mil na China. Todo cartel tem problema para esconder dinheiro. Por isso, enterra. Por enquanto, vejo mais dinheiro enterrado e em cofre.
Como o País pode combater o PCC de forma eficiente?
Esse é um problema do Brasil. Não é mais de São Paulo. O PCC não é só a maior organização do País, mas a maior da América do Sul, em termos numéricos e de movimentação financeira, até porque os cartéis colombianos se esfacelaram. O PCC é hoje um problema internacional. Ele é uma grande preocupação para a Senad (Secretaria Nacional Antidrogas), do Paraguai. Já existe um monte de paraguaios integrando o PCC. Assim como na Bolívia. O PCC não tem fronteiras e conta com a ineficiência do Estado brasileiro. Eu só posso atuar em São Paulo, mas ele atua em todo País. Não temos uma agência nacional ou uma força-tarefa multi-institucional de combate ao crime organizado, capaz não só de ditar politicas, mas também de executar operações, como na Itália. Falta integração entre as polícias e os Ministérios Públicos. Não conseguimos trabalhar juntos. Em 27 anos como promotor nunca vi isso. Talvez, antes de me aposentar, ainda consiga ver. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.